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OS DEUSES VIVOS DA VIDA

PREFÁCIO

 TEMA

 

    Como foi indicado atrás, este trabalho é dedicado a todos os filhos do autor: os cinco de sangue e os inúmeros que ao longo de várias dezenas de anos passaram pelas suas aulas. Portanto, o objectivo foi sobretudo deixar­lhes mais estes pensamentos, que a experiência da vida lhe trouxe. Nalguns casos, poderão parecer excessivamente pormenorizados para quem domine bem os assuntos tratados; mas a ideia foi taxativamente descrever o que pensava.

    A trama do livro serviu também para entretecer algumas ideias utópicas, que mais não pretenderam do que contribuir para o `eterno debate´. Debate político nas conclusões de José e no Manifesto de Fatinha, debate religioso e metafísico nas de João.

    Quanto à forma, usou‑se o método, já ensaiado anteriormente, de variar de letra consoante o interlocutor, tirando partido de todas as possibilidades que a escrita por computador presentemente concede ao escritor. Isso, como já foi referido, dispensa muitos declarativos e permite uma simulação mais aproximada das discussões reais, em que frequentemente os interlocutores falam ao mesmo tempo. Permite também misturar, sem confusões, interlocutores num mesmo parágrafo e a fala com a narrativa. O autor, porém, não tem preconceitos contra o travessão e usa­o para a mudança de fala das personagens.

    A ideia foi sempre facilitar a comunicação entre o fluxo de pensamento do autor e a percepção no leitor (sem prejuízo de o deixar tirar as suas próprias conclusões, a não ser quando se desejava que não ficassem mesmo nenhumas ambiguidades).

    Entre a aversão actual dos nossos tempos ao sentimento exagerado na literatura (a lamechice, como muitos o designam) e o desejo de comungar exactamente a emoção, algumas vezes o autor assumiu que a fluência sentimental fosse simplesmente aquilo que ele próprio sentia, sem pruridos nem artifícios.

    No caso dos contos de fadas para crianças, por exemplo, é desde o início estabelecido um pacto: o contador faz sempre ficção; e a criança, prevenida de que as fadas não existem, envolve contudo a sua imaginação no relato, como se tudo fosse verdadeiro. Ora, neste romance, o leitor poderá fazer de conta que tudo aconteceu como está contado, mas fica prevenido de que (excepto nos nomes de figuras públicas ou nos acontecimentos históricos conhecidos, nomeadamente os tumultuosos que ocorreram após o Vinte e Cinco de Abril), todos os nomes, vivências e pensamentos das personagens foram ficcionados livremente, no contraponto romanesco de Kundera.

    E com um horizonte dificilmente atingível: narrar «histórias vistas e inventadas, vividas e imaginadas e terá a arte suprema de apagar as fronteiras entre umas e outras». (Saramago, in «Levantado do Chão»).

 

ELENCO PRINCIPAL NO LIVRO

 

JOSÉ SILVA DA SILVA

    Licenciou­se com inúmeras dificuldades económicas, como se verá no desenrolar da história. Casado, com quatro filhos no início do romance (1974).

    Politicamente com poucas certezas e em busca de uma utopia. Estruturalmente honesto, mas muitas vezes em dúvida sobre se a moral não poderá ser também um artifício dos espertos, para que haja `carneiros de sacrifício´. Um agnóstico, mas que bem desejaria ter fé. Adaptado à civilização `consumista´, mas profundamente desiludido com as contradições desta civilização, poluente e alienante. Conseguiu conquistar bens materiais, mas desprezando sempre o mito da realização pela acumulação de posses.

 

JOÃO BAPTISTA DA SILVA

    Pai de José. O João, no início deste romance, com uma doença incurável, tem já pouco tempo para viver e procura ansiosamente entender­se, nas suas crenças de criança e nas leis do Universo. A parte da descrição dos factos da sua vida foi colhida do legado dos seus escritos; com as alterações necessárias à efabulação geral do romance e aos arranjos linguísticos.

  

ALDA LORENA DA SILVA

     Esposa de José. Muitos filhos. Sensata, católica convicta, praticante. A fonte de equilíbrio neuropsíquico da família, como é tão frequente nalgumas mulheres do nosso país.

 

RUI MANUEL LORENA DA SILVA

    Filho primogénito de José. No início do romance: dezoito anos, estudante universitário, revoltado com o ensino que recebe. Bem formado, mas um pouco à deriva nas suas convicções.

 

BELINDA: CARLA MARIA SALES DE BRITO

    Enfermeira de oncologia, assistente de João. Filha de um médico. O protótipo inicial da actual `mulher moderna´. Naquela altura, ainda um pouco conservadora do pudor que sempre tem caracterizado a mulher, mas ansiando por libertação e disposta a assumir corajosamente o seu futuro, sem dependências exclusivas do homem como no passado. Bondosa e terna. Vinte e dois anos no início do romance.

 

ALDA FÁTIMA LORENA DA SILVA

    Lutadora, mas profundamente generosa. Personagem indesejada antes do seu nascimento. Que acabou por se tornar o tesouro de sua mãe, mas que irá transportar consigo, como um estigma, o fatalismo que lhe trouxe os primeiros dias de existência.

    «Nunca se sabe quando irá nascer um S. Paulo, um Marco Aurélio, um Francisco de Assis, uma Curie?...»

    …Ou uma `divisora das águas´... Que revertem implacáveis...

 

 

ÍNDICE

 

PARTE I

Três Gerações

João

Belinda

Rui e Fernandino

 

PARTE II

José

 

PARTE III

O Embrião

O Doutor Luís Miguel

O Plenário

Luz Verde

Uma Mulher é Uma Mulher

Liberdade Consciente na Morte

A Promessa de Belinda

 

PARTE IV

O filme inicial da revolução

O Inquérito disciplinar

A Segunda Parte do Filme

O Cálice do Sacrifício Doce

O saneamento

A Terceira Parte do Filme

A Quarta Parte do Filme

 

PARTE V

Filósofos, cientistas e religiosos

Belinda e Rui

Rui e João sobre Belinda

Rui e Belinda no Metropolitano

O Acordo da Mata

Pai e Filho

Se Platão Estiver Certo

 

PARTE VI

A Romagem

O Opiácio

Os Sonhos de João

 

PARTE VII

O Projecto de Belinda

Trapaceiro

Quadros de Valores

Tarde Demais

O Maior Homem do Mundo

Os Deuses Vivos da Vida

 

PARTE VIII

Conhece-te a ti mesmo

Oferta e apanha

Pistolão e Pistolinha

 

PARTE IX

Os Frutos do Acaso

Ponderar o Passado

O Drama

O Novato

 

PARTE X

A Indesejada

A Jovem do Sonho

 

 

 

RESUMOS

 

PARTE VII  – Os Deuses vivos da vida:

 

    Nenhuma coisa é nada! E o nada pode afinal ser muita coisa... Pode, até, ser o Nirvana de Buda, a paz suprema. Mas ,de certeza, lágrimas é alguma coisa. Interrompeu-se, continuou, sempre naquela sua voz agreste: Tu sabes qual a pior coisa que fizeram à memória de Buda?

      Belinda não quis fitar a mãe. Limitou-se a emitir um pouco audível `não´, em voz rouca. A velha prosseguiu, sentenciosa:

      Buda disse em vida que não era deus; mas, depois de morto, fizeram dele deus. Do meu ponto de vista, transformaram‑no num deus morto, bem diferente daquilo que ele era quando vivo. O deus morto é aquele que toma a imagem que os vivos depois entendem, sem poder rectificar os exageros ou as mudanças de conveniência que lhe fazem para que tenha uma forma impressiva... Quando deixa doutrina especificamente escrita, é possível que o deus permaneça algum tempo vivo depois de morto; mas, até nesse caso, frequentemente a interpretação que os seus seguidores acabam por dar às suas ideias não é nada fiel ao que ele pensava. No caso de Buda, este ser excepcional advogava a simplicidade e sempre defendeu, em vida, que era o mais humilde dos humildes; contudo, erigiram‑lhe mais tarde monumentos de uma ostentação de riqueza completamente inadequada. Isso aconteceu porque, estando ele morto, não podia condenar a riqueza absurda com que lhe rodeavam a imagem...

        Fez um gesto confirmativo com uma mão. — E isto acontece com muitas religiões… Nem a Católica, com um Jesus simples, que advogava «Vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me.», escapou a esta tentação da magnificência… É que uma Igreja magnificente é necessária a uma hierarquia poderosa…

        Encolheu os ombros. Este absurdo `de se rodear de ostentação a imagem morta dum deus simples em vida´ é aquilo a que eu chamo a `o paradoxo formal das religiões´. Os sabidos da vida sabem que a pobreza visível nunca impressionou grande coisa as multidões, porque não é lá grande motivo de imitação. Sabem também que, às avessas, o que impressiona sempre é a força dos meios materiais poderosos. A solução adoptada pelos religiosos sabidos é apregoar a doutrina dos deuses que eram simples quando vivos, com recurso a processos que façam com que os deuses mortos impressionem pela grandeza de que são rodeados. E, às vezes, até desvirtuam as suas ideias, ou põem na sua boca coisas que eles nunca disseram. É uma deslealdade para os deuses da vida, pois transformam-nos em deuses mortos. Os maiores criminosos deste mundo são os que matam os verdadeiros deuses da vida. Daí que eu desconfie de tudo o que queiram dizer-me sobre deuses, desde que eu não possa beber a inspiração exactamente naquilo que eles disseram. Olha, nem o que Platão nos escreveu de Sócrates me convence sobre Sócrates, pois este não deixou nada escrito pelo seu punho.

 

 

 

Conclusão do capítulo `Os sonhos de João´:

 

       E o meu outro eu, agora na voz que me persegue desde criança, concluiu: — «Em verdade, em verdade vos digo que muitos são os que dormem, poucos os que conseguem ter o seu sonho lindo». Depois virou-se para o cadeirão vazio:

       — Não te vejo, não sei quem És nem o que És, mas não posso negar-Te, pois És a minha Esperança de que exista uma Explicação. Posso negar as especulações humanas sobre um Deus feito à imagem dos humanos; mas, para mim, Deus será o Mistério, a minha ignorância, a incapacidade de entender o que existia antes de tudo ter começado, ou de como é que `do nada´ foi possível fazer alguma coisa.

       Finalmente, aquele meu eu deixou cair os braços, e, cabisbaixo, fitou a árvore lá longe.

       Então, após uma explosão de luz, que irradiou como um relâmpago na imensa assembleia, fez-se uma ausência de mim, fora e dentro do meu corpo. Um `Nada´ profundamente calmante.

       O milagre da vida pode oferecer um encantamento que vale bem a pena experimentar. Permite a transmissão dum ADN que perdura, nos filhos que formos deixando.

       Mas se há o Inferno de o corpo poder acordar na dor, é infinitamente reconfortante imaginar um Reino do Céu onde Tudo é belo, Tudo é perfeito, Tudo é eterno, na paz sem limites do Nirvana.

 

 

 

Últimas palavras do livro:

 

     O amor é sempre um testemunho do Deus permanentemente vivo, nos ideais de todas os grandes religiosos.

     Pois, não obstante a doutrinada ideia de que só é importante o que se segue, em eternidade, à vida na Terra, devemos ter sempre presente o que nos disse Jesus, pelo Evangelista S. Mateus: «Não dos mortos, mas dos vivos é que Ele é Deus» [X: Mt 22, 32]».”

 

 

 

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