Julho de 2020
Críticas na aplicação do AO90
No interessante e bem estruturado artigo: Ortografia: de Recomendações e Petições Está o Inverno Cheio, publicado por Nuno Pacheco (N.P.) no Público, o reputado jornalista refere duas questões de base que considera não serem aceitáveis quanto à aplicação do AO90, no seu entender de opositor ao AO90 (N.P.: «utilidade nunca demonstrada» e «proveito rigorosamente inexistente»):
a) O facto de terem sido suficientes três assinaturas para fazer vigorar o AO90 nos oito países de língua oficial portuguesa, segundo o permitido no Protocolo Modificativo de 2004 (N.P.: «três não são oito, nem por oito podem valer»).
b) A constatação de que a `Iniciativa legislativa de cidadãos (ILC-AO) com vista à revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, que aprovou o critério a)´, pode ser ineficaz porque, segundo a Constituição, os cidadãos têm o direito de propor iniciativas legislativas, sim, mas não podem ter qualquer ação sobre esta resolução do Governo.
Faço as seguintes considerações sobre este artigo.
Parece concluir-se que os cidadãos têm teoricamente o poder de se oporem a leis mas não a resoluções do Governo. Uma vez um grupo eleito pelo povo para ter maioria no Parlamento, o Governo (desse grupo) pode ignorar depois “completamente” até o povo que o elegeu, por meio de resoluções que faz aprovar na Assembleia com a sua disciplina de voto. O ideal democrático da frase de Lincoln está comprometido neste facto.
Por outro lado, lembra-se que a questão de três poderem representar oito não escandaliza nas regras democráticas instituídas, se os oito delegarem esse poder em três. A Iniciativa dos cidadãos com esta base não parece suficiente.
Como aparte e lembrando Locke, fica a dúvida de como é que em decisões desta natureza as minorias ficam defendidas, demais a mais se a decisão foi por maioria simples (por exemplo, por mais um voto dos presentes). Esta questão releva a necessidade de se reverem essas tais regras instituídas nas democracias vigentes, presentemente em causa. As minorias não podem bloquear o normal funcionamento das instituições, mas deveriam ser sempre protegidas com votações qualificadas em questões consideradas muito importantes, ...como, por exemplo, é a da questão em apreço.
Pessoalmente, no caso do AO, eu até compreendo a posição do Governo, visto a) resultar de uma decisão internacional. Penso que denunciar a vigência do AO90, como no fundo pretende a petição pública, talvez não seja conveniente sem uma ação concertada e com justificações, com os outros membros da CPLP.
Reconheço, é facto, que o AO90 tem várias incongruências e imperfeições e, por isso, precisa de ser refundido nalguns aspetos técnicos. Por exemplo, os legisladores do AO90, que distinguiram o verbo pôr da preposição por, dado serem ambas frequentes num texto, teimaram, obtusos, na supressão do acento na forma verbal pára, ficando a sua grafia a confundir-se com a preposição para (ambas também frequentes), com a ideia peregrina de uniformizarem as paroxítonas a não terem acento gráfico, esquecidos de que as temos muitas acentuadas: órgão, félix, dúctil, etc. Outra decisão técnica francamente condenável dos ortografistas do AO90 foi terem transportado, do projeto absurdo de 1986, muitas das suas decisões imponderadas, como a de deixarem de distinguir compostos de locuções nas ligações com preposição. Havia este cuidado na Norma de 1945 como, por exemplo, em: água-de-colónia, bairro-de-lata, que são compostos, logo devem ser grafados com hífen.
A ideia de se esperar por nova ação internacional conjunta tem o problema de que os aperfeiçoamentos desejáveis no AO90, talvez mesmo um novo texto, só se conseguirão daqui a muito tempo ou mesmo nas calendas, e vamos continuar demoradamente mergulhados na confusão.
Confusão reinante na lusofonia que não derivou da decisão tomada no Protocolo de 2004 citado, mas do Protocolo Modificativo de 1998, que permitiu ignorar os condicionalismos de datas previstos no Preâmbulo e, assim, a necessidade implícita de haver o Vocabulário Comum (VC) prévio a o AO90 entrar em vigor. O AO90 esteve vinte anos na gaveta, sem que se conseguisse realizar esse VC indispensável; então, para se poder avançar, decidiu-se dispensá-lo, subvertendo o espírito expresso no Preâmbulo.
De facto, o VC prévio teria a virtude de ser um conjunto dos vocábulos comuns no universo da língua mais as variantes usuais em cada país e nele recomendadas, mas suscetíveis de serem também legais em toda a lusofonia. Ficaria sendo o símbolo da tal pretendida ortografia unitária da língua portuguesa nos países que a têm como oficial e constituiria o esqueleto sobre o qual se formariam todos os vocabulários nacionais da lusofonia, cada um deles, então, com mais as suas múltiplas variantes muito específicas (por exemplo: Brasil fauna e flora, PALOP influência de línguas nativas). Os ditos Vocabulários Comuns que foram elaborados muito depois de o AO90 entrar em vigor são incongruentes por estarem inquinados por vocabulários nacionais elaborados sem o VC prévio e por, na sua multiplicidade, falsearem a unificação pretendida no espírito do Preâmbulo, no qual muito claramente está escrito: «elaboração .... de “um” vocabulário ortográfico comum».
Do meu ponto de vista, é este efetivamente o pecado capital da aplicação geral do AO90, que deu origem ao paradoxo de a pretendida língua única portuguesa ter agora três ortografias diferentes, como sublinho no meu livro: Novo Vocabulário Ortográfico, Conciliador do Acordo de 1990 com a Norma de 1945. Também neste caso, não contesto a legalidade democrática da decisão, o que contesto frontalmente é a sua leviandade técnica, que adulterou completamente o objetivo do projeto, pois, assim, permitiu desunir mais a língua, quando, inversamente, se pretendia mais união. Como exemplo frisante, temos várias palavras com a consoante da sequência, como acepção, que eram únicas no universo da língua e deixaram de ser válidas em Portugal e como accionar, que só continua válida em cerca de metade dos países da lusofonia e nos falantes portugueses que, assim legitimamente, continuam a escrever na Norma de 1945.
Ora, no meu livro idealizo, para meu uso pessoal, com poderia ter sido o vocabulário para o AO90 em Portugal se o VC prévio tivesse sido elaborado oportunamente.
Repare-se que o vocabulário para o AO90 imposto para o ensino e administração em Portugal também foi uma resolução do Governo (note-se que sem consulta pública suficiente: academia, escritores, jornalistas, professores de português). Ou seja, pelos vistos, o Governo tem também o poder de o impor aos cidadãos enquanto assegurar maioria no Parlamento. Mas há uma diferença que o Governo devia ponderar: esse vocabulário imposto é meramente uma interpretação do texto do AO90. Pode ser outro, sem que seja necessário denunciar imediatamente o AO90. Como excede o que na supressão das consoantes mudas é obrigatório, segundo o estabelecido na Nota Explicativa, é, por isso, abusivo na simplificação e causa de desunião. Foi o que defendi no meu citado livro.
Acontece que Os Verdes acabam de apresentar um projeto de resolução que recomenda ao Governo a avaliação dos impactos do AO90 (com suspensão, numa situação limite). Neste caso, salvo na suspensão, não há razão internacional para que o Governo não avalie os impactos, a bem da língua.
Depreende-se, pelas suas palavras, que o jornalista Nuno Pacheco deseja a suspensão e vai mais longe: conclui o seu artigo, escrevendo: «Mas antes, era bom que a Assembleia da República cumprisse a sua missão de decisor, não de mero pedinte, e desse uso às responsabilidades que lhe cabem.».
No meu entender, que pretendo, desde já e por agora, só melhoramentos, pois encontro também algumas virtudes no AO90, a Assembleia da República podia, no seu poder, elaborar uma lei que obrigasse a que a “aplicação” do AO90 em Portugal fosse rapidamente revista para atender mais às peculiaridades da variedade portuguesa. Note-se que bastaria que fosse oficialmente constituída uma entidade idónea para apresentar propostas, dando continuidade ao preconizado, no seu profundo estudo, pelo seu Grupo de Trabalho sobre o AO90 na última legislatura.
D’ Silvas Filho